Trabalho na Empresa há duas semanas e dois dias. Todos os dias levanto-me às 6h45 se tiver que tomar banho de manhã ou às 7h se já tiver passado essa etapa na noite anterior. Visto-me com as roupas normais de mulher que trabalha na Empresa e passa o dia e os dias entre um monitor e uma cadeira: calças ou saia pelo joelho, botas de cano alto ou sapatos, blusa ou camisola de gola alta, roupas invariavelmente castanhas, pretas ou cinzentas, cabelo apanhado, base na cara para disfarçar as olheiras crónicas e o rímel para avolumar estas minhas curtas pestanas.
Depois preparo a marmita do dia: coloco o mini tupperware de sopa na lancheira azul, três peças de fruta, um pacote racionado de quatro bolachas de aveia e um iogurte de pêssego. Entretanto, já tirei do frigorífico o iogurte líquido para o meu pai que se levanta à hora certa para me levar à estação de comboio.
Ali, dirijo-me à bilheteira, digito o 825, pago os 2.15 euros e entro no comboio onde já reconheço as mesmas caras ensonadas de todos os dias. Uma hora e quarto depois – uma viagem ao som da TSF e das interferências, as 50 olhadelas em direcção ao placar electrónico para acompanhar o avanço no tempo e no espaço e umas sonecas que põem as minhas costas a clamar por socorro – saio do comboio e dirijo-me à Empresa.
Enfio o indicador no porteiro electrónico, empurro a porta pesada e dou o meu sempre bem-disposto “Bom dia!”. Os meus colegas dão-se beijinhos uns aos outros pela manhã mas eu, confesso, sinto-me bastante constrangida com essa coreografia estranha ausente de afectos. No início, os cerca de 50 trabalhadores daquela Empresa pareciam-me uma indistinta massa anónima que dava muitos beijinhos.
Sento-me na secretária, valido-me como uma legítima utilizadora de um sistema para o qual eu sou apenas um número. E começa o dia de labuta com duas paragens para café – uma de manhã e outra à tarde. A pausa maior é para o almoço, refeição que tomo também na Empresa.
Já noite regresso no mesmo comboio rodeada de caras menos frescas e olhares mais gastos – o dia passou e devo ter aproveitado no máximo 60 minutos de luz natural e é a altura em que uma vez ouvi alguém dizer algo que me avassalou por dentro: “Até já, vemo-nos dentro de umas horas”.
Chego a casa às 20h45 ou 21h45, conforme a duração da jornada. Fico junto da minha mãe a comer uma sanduíche e ouço o dia dela. Eventualmente, escrevo no blog e viajo por vidas mirabolantes com a novela da noite. E assim durmo.
No dia seguinte, a seguir e depois, o mesmo.
Quando era miúda nunca imaginei que fosse ter uma vida assim, normal. Há cenários que realmente não nos passam pela cabeça quando somos pequenos – nem como melhores, nem como piores hipóteses. Eu tinha pensado em tudo para mim, menos esta vida.
Que não se leia nesta descrição tons de queixa. Hoje esta vida normal que tenho é o que eu escolhi. É que as vidas exóticas são um engodo e dão muito mais trabalho do que se imagina, principalmente quando somos pequenos.
Porto/Guimarães, 17 de Novembro de 2009
in: Os Diários no Comboio
17 novembro 2009
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3 comentários:
"..as vidas exóticas são um engodo e dão muito mais trabalho do que se imagina, principalmente quando somos pequenos."
Nem mais.
Abraço e obrigado pela partilha
ola um dia tive uma vida assim mudei começei do 0 e aprendi que tudo tem um preço mas valeu a pena hoje vivo na criatividade e no desafio de mais um dia a pintar uma prancha e de nao dececionar o cliente a unica coisa em comum é a marmita que tb levo no teu intimo esta um sonho esse pode ser possivel de realizar mas tem um preço
Eu não levo marmita, roubo os pratos das outras outras pessoas quando chego à empresa e quero juntar-me à "família" na cozinha, e não tenho um comboio para apanhar todos os dias. Fora isso, revi-me completamente no que escreveste aqui.
Na empresa visto roupa dos crescidos e até o meu nome me retiram para ser só a Maria, e não a Milú que toda a gente chama desde que ela é pequenina e se lembra de ouvir alguém chamá-la. É no que dá querer ser como as pessoas.
Quando tiver mais tempo espreito mais coisas :)
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