17 novembro 2009

A Empresa

Trabalho na Empresa há duas semanas e dois dias. Todos os dias levanto-me às 6h45 se tiver que tomar banho de manhã ou às 7h se já tiver passado essa etapa na noite anterior. Visto-me com as roupas normais de mulher que trabalha na Empresa e passa o dia e os dias entre um monitor e uma cadeira: calças ou saia pelo joelho, botas de cano alto ou sapatos, blusa ou camisola de gola alta, roupas invariavelmente castanhas, pretas ou cinzentas, cabelo apanhado, base na cara para disfarçar as olheiras crónicas e o rímel para avolumar estas minhas curtas pestanas.

Depois preparo a marmita do dia: coloco o mini tupperware de sopa na lancheira azul, três peças de fruta, um pacote racionado de quatro bolachas de aveia e um iogurte de pêssego. Entretanto, já tirei do frigorífico o iogurte líquido para o meu pai que se levanta à hora certa para me levar à estação de comboio.

Ali, dirijo-me à bilheteira, digito o 825, pago os 2.15 euros e entro no comboio onde já reconheço as mesmas caras ensonadas de todos os dias. Uma hora e quarto depois – uma viagem ao som da TSF e das interferências, as 50 olhadelas em direcção ao placar electrónico para acompanhar o avanço no tempo e no espaço e umas sonecas que põem as minhas costas a clamar por socorro – saio do comboio e dirijo-me à Empresa.

Enfio o indicador no porteiro electrónico, empurro a porta pesada e dou o meu sempre bem-disposto “Bom dia!”. Os meus colegas dão-se beijinhos uns aos outros pela manhã mas eu, confesso, sinto-me bastante constrangida com essa coreografia estranha ausente de afectos. No início, os cerca de 50 trabalhadores daquela Empresa pareciam-me uma indistinta massa anónima que dava muitos beijinhos.

Sento-me na secretária, valido-me como uma legítima utilizadora de um sistema para o qual eu sou apenas um número. E começa o dia de labuta com duas paragens para café – uma de manhã e outra à tarde. A pausa maior é para o almoço, refeição que tomo também na Empresa.

Já noite regresso no mesmo comboio rodeada de caras menos frescas e olhares mais gastos – o dia passou e devo ter aproveitado no máximo 60 minutos de luz natural e é a altura em que uma vez ouvi alguém dizer algo que me avassalou por dentro: “Até já, vemo-nos dentro de umas horas”.

Chego a casa às 20h45 ou 21h45, conforme a duração da jornada. Fico junto da minha mãe a comer uma sanduíche e ouço o dia dela. Eventualmente, escrevo no blog e viajo por vidas mirabolantes com a novela da noite. E assim durmo.

No dia seguinte, a seguir e depois, o mesmo.

Quando era miúda nunca imaginei que fosse ter uma vida assim, normal. Há cenários que realmente não nos passam pela cabeça quando somos pequenos – nem como melhores, nem como piores hipóteses. Eu tinha pensado em tudo para mim, menos esta vida.

Que não se leia nesta descrição tons de queixa. Hoje esta vida normal que tenho é o que eu escolhi. É que as vidas exóticas são um engodo e dão muito mais trabalho do que se imagina, principalmente quando somos pequenos.


Porto/Guimarães, 17 de Novembro de 2009

in: Os Diários no Comboio

16 novembro 2009

Mayra Andrade - O início e o fim

Pressionando minusculamente uns botõezinhos do meu mp3, hoje lá consegui configurar este isqueiro rosa fucsia, que podia dar lume mas que dá música, a reproduzir wma (sendo que é tudo uma questão de tempo até algum chinês se lembrar da utilidade desta integração e qualquer dia tenho um mp3 que dá música e… lume).

Os dois álbuns que tenho em wma são da Mayra Andrade. E revelou-se-me: há quase três anos foi com o primeiro disco da Mayra que fui aprendendo as minhas primeiras palavras em crioulo (usava a metodologia de atentar às letras para saber a língua). Com o primeiro álbum fui navega(ndo) nas palavras, nas expressões, nas conjugações verbais. Lá aprendi o que quer dizer “Lapidu na bo”e como se cantam hinos à Lua para “lumia(r) nha corpo ku caima”. Foi a banda sonora dos meus primeiros dias e daquele chorrilho de descobertas, aprendizagens e emoções confusas mas tão, tão bonitas!
Dois anos e meio depois, fechava-se o ciclo: já aprendido o crioulo, já o funáná dançado, já o grogue bebido e já um país descoberto. A poucos dias do voo da TAP que me raptaria/salvaria do que foi Cabo Verde, ofereceram-me o segundo álbum da Mayra. E nos meses seguintes ao regresso desejado/forçado foi banda sonora de uma saudade quase física, quase palpável, do desmame daquela que foi a minha terra mãe adoptiva com quem tive uma intempestiva relação de amor/ódio.

O início:
“Bo seiva invadim nha coraçon
Sem limite
Ai! Si n pudesse beber un cálice di bo melodia
Bo feitice ta infeitiçam
Bo praga ta maldiçoam
Bo seca ta secam na peito
Ma mesmo assim djam kre bu morna”
(Regasu, 2006)

E o fim:
“Rainha na desamparo
Nsta djobi caminho
Ku spada i força di sodadi i dor
Ku alma livre na tempu
Nkre vivi ku odjus fitchadu
Pam teneu djuntu ku mi, ku mi…”
(Odjus fitchadu, 2009)
Porto/Guimarães, 16 de Novembro de 2009
in: Os Diários no Comboio

Caridades sazonais

“Dão-te um pedaço de pão como se dessem uma nota de mil, e acabando de o dar imaginam que têm abertas as portas do Paraíso. Pensa bem, que motivo os leva a fingir que são generosos? É para se porem em paz com a sua consciência, apenas para isso, meu pequeno. Atiram-te uma côdea e assim já não se envergonham de comer. É apenas por isso, não penses que é por terem pena de ti. O tipo que come de modo a saciar toda a fome é um selvagem e nunca tem pena do que tem a barriga vazia. O saciado e o faminto serão sempre inimigos, olharão sempre um pra o outro como cães prontos a engalfinharem-se. Não há possibilidade de se comoverem e de procurarem entender-se…”

in: "O avô Arkhip e Lionka", de Máximo Gorki (1868-1936)

Guimarães/Porto, 13 de Novembro de 2009

in: Os Diários no Comboio

11 novembro 2009

Mãe – Hoje não há adivinhações!

Hoje não me consigo perder em nenhuma história ou concentrar-me em qualquer expressão. Hoje quis que o dia passasse depressa e só penso na minha mãe. Penso no cheiro da minha mãe, no riso da minha mãe, nas mãos trabalhadas da minha mãe, nos olhos verdes da minha mãe, no narizito engraçado da minha mãe, na dedicação da minha mãe, do comprometimento incondicional da minha mãe, na nobreza da minha mãe, na sinceridade da minha mãe, na beleza da minha mãe e em todo este imensurável amor que tenho por ela.

Guimarães/Porto, 11 de Novembro de 2009

in: Os Diários no Comboio

A Manga

Nada o desconcentra daquela manga tão sumarenta. O rebuliço do comboio e os encontrões das pessoas na busca de um lugar sentado não o perturbam.

Corta minuciosamente aquela manga, com uma concentração incomum, arregalando os olhos à medida que a descasca com cálculos milimétricos. Péla a manga cirurgicamente com um canivete, começa por fazer um corte a direito, um perpendicular e outro paralelo ao primeiro. Conclui a operação e forma então um cubo que arranca e delicia como se fosse de todos os manjares o maior. Vai fazendo linhas de três cubos cada. Parece-me que a manga está no ponto ideal, nem um dia a mais, nem um dia a menos – a casca é intermitentemente verde e vermelha, por dentro é amarela madura com cada fiapo a formar uma goma compacta doce. De golpe em golpe, um cubo, dois cubos, três cubos, chega ao caroço estropiado e - finalmente - suga-o para evitar qualquer desperdício.

Nelson traz um saco plástico que deduzo ser da Ajuda Alimentar. É muito alto e encorpado, apesar de ser magro. Tem uma cabeça desproporcional ao corpo. Cabelo ralo e fino, barba por fazer, um rosto sulcado de ossos cobertos por uma fina película de pele baça. Os olhos são enormes, imensos e profundamente aterrados em duas camadas de olheiras pretas. Estão sempre muito abertos como se com eles quisesse consumir o mundo todo.

No outro saco plástico tem quatro velhas e lidas e relidas revistas cor-de-rosa negro que lê com a mesma atenção que lhe mereceu a manga. Podia ser mais um qualquer arrumador de carros que circula nos suburbanos do Porto à socapa dos revisores. Mas ninguém poderia ficar indiferente à forma de comer aquela manga. Até eu que nem gosto de manga, me deu vontade de comer uma!


Guimarães/Porto, 10 de Novembro de 2009

in: Os Diários no Comboio

Exercícios de adivinhação

Alguma vez, numa das muito rotineiras viagens de transportes públicos, se perderam em pensamentos sobre uma ou outra pessoa que vai à sua frente? Deram-lhe um nome, adivinharam-lhe a idade, imaginaram-lhe uma história? Eu sim. Faço-o constantemente. Não consigo controlar-me e quando me apercebo já estou a traçar um passado e um futuro a alguém que sobressai na massa anónima que todos os dias circula no meu comboio.

Guimarães/Porto, 09 de Novembro de 2009

in:Os Diários no Comboio

09 novembro 2009

Retrospectiva existencial

"Eu tenho 4 anos. Depois tive três, depois dois e depois um ano. Depois acho que não tinha nada. Não era nada."

Cristiana, menina de quatro anos, viagem Porto/Ermesinde, aos 09.11.2009

08 novembro 2009

Back to my teen age

Quase nos 25 anos, ando a passar a fase do "estou-a-aperceber-me-que-os-anos-passam-e-não-vamos-ser-jovens-para-sempre". Porque quando somos jovens parece que acreditamos a sério que esta condição é eterna.
Durante o concerto dos Skunk Anansie (04.11.2009, Coliseu do Porto) recordei-me que era a banda que ouvia há dez anos atrás, quando a minha mãe me começou a deixar sair à noite para assistir aos concertos da Ana, que cantava, preferencialmente, Skunk Anansie. Há dez anos atrás, em que berrava a "Brazen Weep", enquanto fazia as limpezas de sábado à tarde. Pensei o que seria ter assistido a este concerto há dez anos atrás... e o que foi assisti-lo agora, que já não preciso da autorização da mãezinha para sair até à meia-noite, nem limpo a casa aos sábados. O concerto, parte da tour apropriadamente intitulada "Greatest Hits", pareceu quase coisa do destino a fazer o jeitinho à Catarina que anda com tantos ataques saudosistas.
*Foto in Blitz online

01 novembro 2009

Revolucionemos!


Eu sugiro que nos inspiremos na força e inteligência destes três senhores e REVOLUCIONEMOS!

É bom acreditar num novo amanhã. E ser idealista. E ser insatisfeito. Eternamente.


O Primeiro Dia, por Sérgio Godinho

A principio é simples, anda-se sózinho
passa-se nas ruas bem devagarinho
está-se bem no silêncio e no borborinho
bebe-se as certezas num copo de vinho
e vem-nos à memória uma frase batida:
"Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida."

Pouco a pouco o passo faz-se vagabundo
dá-se a volta ao medo, dá-se a volta ao mundo
diz-se do passado, que está moribundo
bebe-se o alento num copo sem fundo
e vem-nos à memória uma frase batida:
"Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida."

E é então que, amigos, nos oferecem leito
entra-se cansado e sai-se refeito
luta-se por tudo o que se leva a peito
bebe-se, come-se e alguém nos diz: bom proveito
e vem-nos à memória uma frase batida:
"Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida."

Depois vêm cansaços e o corpo fraqueja
olha-se para dentro e já pouco sobeja
pede-se o descanso, por curto que seja
apagam-se dúvidas num mar de cerveja
e vem-nos à memória uma frase batida:
"Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida."

Enfim duma escolha faz-se um desafio
enfrenta-se a vida de fio a pavio
navega-se sem mar, sem vela ou navio
bebe-se a coragem até dum copo vazio
e vem-nos à memória uma frase batida:
"Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida."

E entretanto o tempo fez cinza da brasa
e outra maré cheia virá da maré vazia
nasce um novo dia e no braço outra asa
brinda-se aos amores com o vinho da casa
e vem-nos à memória uma frase batida:
"Hoje é o primeiro dia do resto da tua vida."


O Charlatão, por José Mário Branco

Numa rua de má fama
faz negócio um charlatão
vende perfumes de lama, anéis d'ouro a um tostão
enriquece o charlatão

No beco mal afamado
as mulheres não têm marido
um está preso, outro é soldado
um está morto e outro f'rido
e outro em França anda perdido

É entrar, senhorias
a ver o que cá se lavra
sete ratos, três enguias
uma cabra abracadabra

Na ruela de má fama
o charlatão vive à larga
chegam-lhe toda a semana
em camionetas de carga
rezas doces, paga amarga

No beco dos mal-fadados
os catraios passam fome
têm os dentes enterrados
no pão que ninguém mais come
os catraios passam fome

É entrar, senhorias
a ver o que cá se lavra
sete ratos, três enguias
uma cabra abracadabra

Na travessa dos defuntos
charlatões e charlatonas
discutem dos seus assuntos
repartem-s'em quatro zonas
instalados em poltronas
Pr'á rua saem toupeiras
entra o frio nos buracos
dorme a gente nas soleiras
das casas feitas em cacos
em troca d'alguns patacos

É entrar, senhorias
a ver o que cá se lavras
ete ratos, três enguias
uma cabra abracadabra

Entre a rua e o país
vai o passo dum anão
vai o rei que ninguém quis
vai o tiro dum canhão
e o trono é do charlatão

É entrar, senhorias
a ver o que cá se lavra
sete ratos, três enguias
uma cabra abracadabra
É entrar, senhorias
É entrar, senhorias
É entrar, senhorias


Rosalinda, por Fausto

Rosalinda se tu fores à praia
se tu fores ver o mar
cuidado não te descaia
o teu pé de catraia em óleo sujo à beira-mar

a branca areia de ontem
está cheiinha de alcatrão
as dunas de vento batidas
são de plástico e carvão
e cheiram mal como avenidas
vieram para aqui fugidas
a lama, a putrefacção
as aves já voam feridas
e outras caem ao chão

Mas na verdade Rosalinda
nas fábricas que ali vês
o operário respira ainda envenenado
a desmaiar o que mais há desta aridez
pois os que mandam no mundo só vivem
querendo ganhar mesmo matando a
quele que morrendo vive a trabalhar
Tem cuidado...

Rosalinda se tu fores à praia
se tu fores ver o mar
cuidado não te descaia
o teu pé de catraia em óleo sujo à beira-mar

Em Ferrel lá p´ra Peniche
vão fazer uma central
que para alguns é nuclear
mas para muitos é mortal
os peixes hão-de vir à mão
um doente outro sem vida
não tem vida o pescador
morre o sável e o salmão
isto é civilização, assim falou um senhor
Tem cuidado...

Alterações Climáticas II

Hoje, 1 de Novembro de 2009, eu vesti umas calças de ganga e uma t-shirt. Nos pés, umas sapatilhas de lona.

* Num feriado em que, há uns dez anos atrás, eu ia agasalhada até aos dentes fazer as visitas no cemitério.