Nada o desconcentra daquela manga tão sumarenta. O rebuliço do comboio e os encontrões das pessoas na busca de um lugar sentado não o perturbam.
Corta minuciosamente aquela manga, com uma concentração incomum, arregalando os olhos à medida que a descasca com cálculos milimétricos. Péla a manga cirurgicamente com um canivete, começa por fazer um corte a direito, um perpendicular e outro paralelo ao primeiro. Conclui a operação e forma então um cubo que arranca e delicia como se fosse de todos os manjares o maior. Vai fazendo linhas de três cubos cada. Parece-me que a manga está no ponto ideal, nem um dia a mais, nem um dia a menos – a casca é intermitentemente verde e vermelha, por dentro é amarela madura com cada fiapo a formar uma goma compacta doce. De golpe em golpe, um cubo, dois cubos, três cubos, chega ao caroço estropiado e - finalmente - suga-o para evitar qualquer desperdício.
Nelson traz um saco plástico que deduzo ser da Ajuda Alimentar. É muito alto e encorpado, apesar de ser magro. Tem uma cabeça desproporcional ao corpo. Cabelo ralo e fino, barba por fazer, um rosto sulcado de ossos cobertos por uma fina película de pele baça. Os olhos são enormes, imensos e profundamente aterrados em duas camadas de olheiras pretas. Estão sempre muito abertos como se com eles quisesse consumir o mundo todo.
No outro saco plástico tem quatro velhas e lidas e relidas revistas cor-de-rosa negro que lê com a mesma atenção que lhe mereceu a manga. Podia ser mais um qualquer arrumador de carros que circula nos suburbanos do Porto à socapa dos revisores. Mas ninguém poderia ficar indiferente à forma de comer aquela manga. Até eu que nem gosto de manga, me deu vontade de comer uma!
Guimarães/Porto, 10 de Novembro de 2009
in: Os Diários no Comboio
11 novembro 2009
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