15 julho 2008

A Senhora das Pedras



Por: Catarina Abreu

Quem passa todas as manhãs pelo posto de gasolina da Terra Branca, uma das principais artérias da cidade da Praia, vê-a dobrada sobre si mesma à cata de pedras preciosas – o cascalho que lhe dá o pouco sustento que precisa. Pedra a pedra vai enchendo o seu balde de 5 litros, que despeja em montinhos de brita. E é assim que vai matando o seu vício, o do trabalho, aquele que não a deixa ficar sentada. Porque acredita que sentar é morrer. Aos anos que tem perdeu-lhes a conta, mas, se lhe observar as rugas, tal como se faz com as linhas dos troncos das árvores antigas, vê-se que deve estar próxima da idade centenária. Nha Maria é o nome próprio deste anónimo rosto que é a senhora das pedras.

São 10 da manhã e Nha Maria descansa o corpo franzino que parece não ter peso. Quando não está de cócoras, concentrada à busca de pedras contempla com orgulho os montinhos de cascalho que já conseguiu juntar. Ao todo são quatro. Acerco-me dela e Nha Maria retribui-me com um sorriso. Peço-lhe que me conte a sua história e noto que fica feliz por ter alguém com quem trocar dois dedos de conversa. Começa logo dizendo que tem o “vício do trabalho”. “Que quer? Que fique sozinha em casa sentada à espera que a vida passe até a morte chegar?”, questiona-me, respondendo assim à minha pergunta se esta não será uma rotina muito pesada e cansativa para ela.

Essa tal rotina de Nha Maria consiste em levantar-se cedo, tomar um copo de leite (conta que é dos poucos alimentos que não lhe causa fastio), e vir desde a sua casa, que “construiu com as próprias mãos” em Tira-Chapéu, até à Terra Branca onde passa a manhã naquele afincado labor. Até há uns meses atrás, ficava a trabalhar à tarde também, mas como o Sol de Verão fica mais forte não suporta o calor, o que a faz rumar a casa às 11 horas.

Nha Maria nasceu no Fogo, numa das localidades do interior de São Filipe. Veio para a Praia ainda pequena, onde casou e teve três filhos: dois biológicos, um dos quais já faleceu, e outro de criação. Depois do marido falecer e dos filhos casarem e rumarem para outras paragens, Nha Maria ficou sozinha. Mas não esmoreceu. Construiu com a força dos seus braços e a grandeza do espírito a casa onde vive. Concluído o ambicioso empreendimento, voltou a ficar sem ter o que fazer. Foi nessa altura que se virou para a apanha das pedras da ribeira na Terra Branca.

Não tendo como proteger o seu tesouro de cascalho, pede aos vizinhos que fiquem de olho método pouco eficaz perante a esperteza dos amigos do alheio. O único “ódiozinho” de estimação que guarda é de uma vizinha que garante ter-lhe roubado a brita, tendo-a depois vendido a um homem da Assomada. “Aquilo foi como me tirarem a colher de comida da minha boca e ter posto na sua”, afirma. “Ka ta fazedu!”

Nha Maria recebe a pensão social mínima de 3500 escudos. Pode subtrair o preço dos seus montinhos de cascalho até aos dois contos e 500. E soma ao seu pé-de-meia mensal as notas inconstantes daqueles que simpatizaram com a sua figura. Do total, dá algum à filha de criação. Diz que come pouco, costume comprovado pelas saliências ossudas do corpo magro que esconde entre panos e roupas. Perante a minha perplexidade de quem dá o que tão pouco tem, sorridente, esclarece-me: “Kel dinhero N ta da-l pa ses sinku fidju, pamodi N ka ta kume-l!”.

*Publicado na edição 857 do Jornal A Semana

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