23 julho 2008

Chás e genocídios


Naquele dia 21 de Julho de 2008, Dragan Dabic contemplava pela janela do seu apartamento no centro de Belgrado o frenesim matinal de um novo dia da capital sérvia. Enquanto espiava o céu nublado, analisando assim a influência meteorológica na energia dos chakras, bebericava um chá fumegante de tília e ginseng. Prolongava-se no prazer daquele sabor raramente metalizado com aroma de caramelo. Ele gostava deste tempo pairado, num minuto zero.

Fechou os olhos para melhor se demorar naquele momento e, de repente, invade-lhe a imaginação uma cena de dezenas de cadáveres empilhados desordenadamente numa vala comum e chega mesmo a sentir o cheiro fétido da carne em decomposição. Revolta-se-lhe o estômago e uma náusea incontrolável sobe-lhe pelo esófago até explodir num vómito aliviante.

Perturbado com tão estranha perturbação do seu íntimo mental e físico, decide não mais ver noticiários de televisão, nem ouvir os blocos radiofónicos e muito menos ler jornais. Só mesmo essas imagens atrozes exaustivamente transmitidas pelos media lhe poderiam provocar tal constrangimento. E logo na sua hora contemplativa do dia!

Esquecendo o infeliz episódio matinal, Dragan Dabic monta na bicicleta, o seu meio de transporte preferido. Aliada ao Tai-chi que pratica todas as manhãs, ambos os exercícios garantiam a manutenção de “mens sana in corpore sano”. Entrou na clínica de medicinas alternativas às 8h em ponto e o cheiro de incenso tranquilizou-o. Seguiu pelo corredor dos acupuncturistas, saudando-os inclinando cordialmente a cabeça – apesar de ter passado anos a estudar a doutrina chinesa continuava fiel ao cristianismo ortodoxo, de onde extraia as lições de meditação.

A sala onde dava as suas consultas de bioenergia, matematicamente decorada segundo as regras do feng shui, abraçava-o e ali podia estender-se nos seus estudos e análises sobre o equilíbrio de forças do ser humano e da Natureza. O primeiro discípulo (era assim que chamava a quem recorria aos seus serviços, pois acreditava que ensinava as pessoas a lidar com as suas descompensações de energia) do dia chegaria apenas às 9h. Entretanto poderia debruçar-se sobre o seu artigo para a revista Zdarv Zivot consultando os livros de Bioenergologia hindu, que um colega lhe tinha trazido de um antiquário perdido algures em Bombaim.

Inspirou fundo para sentir a fragrância quase doce que os livros antigos libertam. Fechou pela segunda vez no dia os olhos. E viu-se a si próprio, sem a barba e sem as longas melenas brancas que o caracterizam, impecavelmente penteado como se tivesse passado por um barbeiro de hotel cinco estrelas. Vestido com um vaidoso Armani preto dava ordens a um homem que lhe parecia familiar – sensação que tinha pela forma como as palavras lhe saiam da boca e não por realmente conhecer a pessoa, que devia ser um general, pela farda e medalhas que ostentava. O seu nome é Radko Mladic.

“Matem-nos a todos! Demos-lhes a oportunidade de regressarem às suas casas. Não quiseram, agora exterminem-nos, violem as suas mulheres e deixem as suas crianças órfãs. Limpem-nos desta terra, para que a Bósnia volte a ser um lugar puro.”, ouviu-se. Mladic acenou afirmativamente com a cabeça, elevou a mão recta à cabeça, tocou os calcanhares e foi ordenar a matança de 8 mil homens e rapazes bósnios-muçulmanos.

Dragan Dabic libertou-se de mais este devaneio matinal quando bateram asperamente na porta da sua sala. Confuso, não entendia a razão para aquelas visões tão claras que se assemelhavam a memórias. Engoliu em seco, estava encharcado em suor. Levantou-se pesadamente do seu cadeirão ergonómico e foi ver quem o acordou daquele despropositado pesadelo.

Assim que abriu a porta e cruzou os olhos com Vladimir Vukcevic, uma película cinematográfica de assassinatos, conluios, apertos de mão, facadas nas costas, cantos de poesia épica acompanhados a guitarra rodou na sua cabeça à velocidade de menos de um segundo. Automaticamente, tudo lhe apareceu claro e translúcido.

Dragan Dabic, ele próprio, era, afinal, Radovan Karadzic, o líder sérvio e um dos senhores da guerra que matou a Bósnia no inicio dos anos 90 e fez mais de 200 mil mortos, a maioria depositados em valas comuns ainda hoje por descobrir. Estava a ser preso por aquele procurador para crimes de guerra por genocídio e foi nesse dia, 21 de Julho de 2008, que deixou de interpretar o papel de terapeuta “new age” e voltou a ser o vaidoso e caricato médico, poeta, assassino e defensor da limpeza étnica e dos ideais da Grande Sérvia.

1 comentário:

Anónimo disse...

muito bom Cata.Gosto deste seu jeito de escrever, acho leve e envolvente. Este achei especialmente bom.