No meio do mês de Julho fui visitar a comunidade dos Rabelados, em Espinho Branco, concelho da Calheta, ilha de Santiago. Foi uma experiência muito gratificante, é entrar noutra dimensão. Por isso, deixo aqui as fotos tiradas pelo meu amigo/colega de trabalho Belito e os textos que publiquei n'A Semana.
A nova era dos Rabelados
Por: Catarina Abreu
Entrar nos Rabelados é viver outra dimensão deste mundo cheio de mundos. Um mundo, onde impera a simplicidade, o “djunta mon” e o misticismo, revelou-se aos outros mundos através da sua expressão artística. Um dia rejeitaram o mundo guiado por regras com as quais não concordavam. Esse mundo também não quis saber e optou por ignorá-los. E assim foram vivendo de costas voltadas até que a aurora do século XXI despertou a nova era dos Rabelados e conciliou estes dois mundos.
Ao chegar ao primeiro funku, conhecemos Ney e Sabino, dois jovens que se sustentam a si e às suas famílias com a venda das telas. As casas di padja, onde nos recebem, são simples, assim como aquela que albergou o nascimento de Jesus e, por isso, optam por este tipo de habitação. A própria disposição do funku fomenta a vida comunitária que pauta o modus vivendi destas gentes: pequenos quartos rodeiam um espaço central onde se encontram e recebem quem vem de fora. Ao contrário do preconceito intrusado na sociedade cabo-verdiana, os Rabelados têm em si toda a morabeza crioula.
O tempo que estes jovens dedicam à pintura e à cerâmica é dividido com as tarefas da agricultura de sobrevivência e que não é suficiente para alimentar toda a população, estimada entre as 300 e as 350 pessoas. A próxima paragem é o atelier onde estão expostas as telas, as bolsas e até peças de mobiliário feitas pelas mãos da juventude da aldeia. Um amontoado de cores e formas invadem-nos a retina, num espaço alegre e de convívio entre todos.
Ali está também instalada a sala de massagens, da responsabilidade de uma rapariga da aldeia que usa a terapia de pedras de vulcão. Aliás, está aqui uma das potencialidades da comunidade dos Rabelados. Como durante anos não contactaram com a medicina moderna, tiveram que apurar técnicas ancestrais, daí que sejam mestres no uso das plantas medicinais, que utilizam segundo o calendário biodinâmico, e já exportam, por exemplo, comprimidos de babosa.
Subindo umas escadas, acedemos a uma esplanada em que as mesas são protegidas do Sol pela mesma padja com que fazem as suas casas e as paredes são revestidas por azulejos pintados e esculpidos com as mãos dos próprios Rabelados. Misá, a artista plástica que há dez anos trabalha em prol daquela comunidade e a quem se atribui a abertura das gentes de Rabu di Spinhu Branku à sociedade, explica-nos o próximo grande projecto para a aldeia. A aposta no ecoturismo afigura-se como uma actividade geradora de rendimento e que possibilita o auto-sustento dos Rabelados. A ideia é trazer turistas que vão viver como um deles: dormir nas suas camas, comer nas suas mesas e participar nos seus rituais. Poderão passear nas levadas das montanhas que cercam a aldeia e aprender nos ateliers de pintura e cerâmica minsitrados pelas próprias gentes da terra.
Voluntários na formação e que chegaram de várias partes do mundo, como França, Itália, Portugal, Senegal a até do Japão, passaram por essa “experiência piloto” de ecoturismo e, segundo nos contam alguns dos jovens que com eles conviveram, o resultado foi positivo. “Podemos aprender outras coisas, saber de outras culturas e eles também podem ajudar no sustento da comunidade”, comenta Sabino.
Essa abertura a outros mundos nota-se com iniciativas, como por exemplo, a realização da aldeia artesanal, em Agosto de 2005, onde qualquer um podia participar em ateliers de arte e de medicina tradicional, em concursos de desportos como “fundia”, “roda” e “tracatchupa” e provar os pratos da gastronomia típica. O lançamento do disco “Cânticos sagrados de Cabo Verde – A litania dos Rabelados”, também em 2005, deu a conhecer as ladainhas com que interpelam Deus, os santos e a Virgem Maria e Lhes pedem para que intercedam em seu favor.
Subindo pela aldeia, conhecemos uma anciã sentada na soleira da sua porta a fazer bonecas de pano. Jocosa, Misá comenta com ela: “Já começou a fazer os maridos, porque até agora só fazia mulheres com os seus filhos amarrados às costas!”. A mulher ri e mostra, vaidosa, a sua forma de arte, que também é o seu sustento.
Em frente ao funku da anciã das bonecas de pano, está o Centro Social de dez salas, a maior conquista dos Rabelados. Ali, funciona o jardim infantil, onde as crianças desenvolvem as suas actividades e têm formação. Na sala de costura, há panos por todo lado, que são “ratchados” e trançados para a tapeçaria e para as bolsas. É onde se confeccionam roupas, que um dia sonham em comercializar. Espalhadas pelo local, estão também as tchabetas das meninas que finalmente conseguiram formar o seu grupo de batucadeiras. Até há bem pouco tempo, as mulheres não podiam cantar nem dançar e “esta foi uma grande vitória”, conta Misá.
Longe vão os tempos em que objectos como câmaras fotográficas e televisores eram considerados obras do demónio. Na sala de televisão, há sessões agendadas duas a três vezes por semana e quem quer assistir paga 10 escudos para fazer funcionar o gerador de electricidade.
Outras pequenas grandes vitórias são os fornos para a cerâmica e para o pão que abastece toda a aldeia e que esta gente exibe com orgulho. A Organização Mundial de Saúde financiou as infra-estruturas básicas como unidades sanitárias e o sistema de aprovisionamento de água. Todas as semanas chega um camião e enche o tanque que fornece o precioso líquido a toda a aldeia.
Por todos os funkus por onde passamos, somos convidados a entrar, a sentar e a dar dois dedos de conversa num crioulo profundo que custa-me a entender. Fomos conhecer a casa de Kanhubai, que conseguiu comprar o seu terreno e erguer a sua “moradia” graças ao dinheiro que fez com a venda das suas telas.
O problema do tchon também já chegou aos Rabelados. Os terrenos que ocupam há décadas não são deles, nem do Estado, mas sim de privados. Manifestaram essa preocupação num encontro, em Fevereiro de 2007, com o Presidente da Assembleia Nacional, Aristides Lima. Durante uma visita à aldeia, José Maria Neves prometeu que vai adquirir esses terrenos para que possam construir livremente os seus funkus e continuarem com as plantações. Os Rabelados aguardam estoicamente o seu cumprimento.
A nossa última paragem é a casa de oração, resguardada pela bandeira do PAIGC. À porta está um senhor idoso, a quem pedimos a benção. Lá dentro está Tchetcho, o jovem chefe dos Rabelados, elevado ao cargo depois da morte do seu pai, Nhô Agostinho, em Novembro do ano passado. Nas mãos tem o que simplesmente chamam “O Livro”. Percorre com os dedos as páginas amareladas da Bíblia e o Lunário Perpétuo, que encerram em si os ensinamentos que guiam a vida dos Rabelados. São os documentos sagrados nos quais acreditam com devoção e que não questionam de forma nenhuma.
Tchetcho afirma-se fiel ao “Livro” e às tradições rabeladas mas defende que é legítimo a busca por uma vida melhor. A pobreza está na origem da partida de alguns Rabelados para a Praia, para outras ilhas e até para o estrangeiro. “Têm o direito de procurar uma vida melhor para as nossas famílias”, realça.
E as viragens de pensamento raramente trazem consensos, daí que a abertura à aldeia global traga polémica ao seio da comunidade. Mas chegou a altura de se romper com um ciclo centenário: primeiro revoltaram-se quando foram trazidos do continente africano para Cabo Verde, depois rebelaram-se contra o poder colonial português e agora chega a hora de terminar com a marginalização imposta pela actual sociedade cabo-verdiana.
Artigo de Opinião
O vil metal
Por: Catarina Abreu
Uma das premissas da comunidade dos Rabelados é a rejeição dos objectos de metal. Claro que com o passar dos tempos essa crença passou a ser apenas uma lembrança do passado, mas pelos vistos, ela ainda faz algum sentido.
Mas como dar razão à história e ensinamentos antigos é este metal (leia-se dinheiro) que volta, agora, trazido por consciências menos escrupulosas, para conspurcar uma obra digna, a de uma comunidade que numa revolução silenciosa conquista o seu espaço, para viver “dignamente” mas à sua maneira, o seu tempo. Enquanto uma pessoa “deu expediente” pelos Rabelados, para que tivessem acesso a condições básicas de vida como água e tratamento médico, ninguém disse nada. Todos calaram e consentiram o percurso de luta de Misá, composto por pequenas grandes vitórias e também por erros, característicos da condição humana.
Mas quando nas regras deste jogo entrou o dinheiro, esse vil metal tão essencial como maldito, a coisa mudou de figura e começa-se a assistir a um levantar de vozes contra quem durante mais de dez anos dedicou-se única e exclusivamente à defesa de uma causa, na qual acredita piamente.
Tudo começou com a Feira Internacional de Arte Contemporânea de Madrid – ARCO 2007, que se realizou em Fevereiro. Misá foi escolhida pela Arte InVisible para ser a comissária responsável pela participação de Cabo Verde no evento. Esta entidade faz parte da Agência de Cooperação Internacional, ligada ao Ministério de Assuntos Exteriores e de Cooperação espanhol, organizadora da Feira.
A escolha recaiu sobre Misá, depois de num primeiro momento, os espanhóis terem seleccionado Danny Spínola, que, na altura, tinha que apresentar alguns artistas plásticos contemporâneos para serem apresentados na Feira. Spínola levou nomes como Nelson Lobo, José Maria Barreto e da própria Misá. Só que a organização de Espanha, ao conhecer o trabalho dos Rabelados, interessou-se mais pelas telas desta comunidade, já que o objectivo, tal como afirma Cuca Guixeras, comissária geral do projecto Arte InVisible, era divulgar “os artistas contemporâneos que vivem e trabalham no seu país e que não têm oportunidade de mostrar a sua obra numa manifestação internacional”.
Seleccionados os Rabelados, Danny Spínola demarca-se da organização porque não queria ser comissário sem poder de decisão. Misá assume o posto e leva o trabalho das gentes de Rabu de Espinho Branco a Espanha. Depois da ida a Madrid, três rabelados de outra comunidade, do Bacio, juntamente com Nelson Lobo, Filipe Furtado, deputado da Calheta eleito pelo do MpD, e um jornalista do Expresso das Ilhas foram encontrar-se com o chefe. Ali tentaram convencê-lo de que Misá teria-se tentado aproveitar da comunidade para promover o seu nome e que se apropriou do dinheiro destinado a Tchetcho.
Numa visita a Espinho Branco, sabe-se a versão da história por aqueles que a viveram. É na remuneração de Misá como comissária - 9000 euros (990 contos), que descontados os impostos somava 6225 euros (684 contos) - e nas ajudas de custo – 200 euros (22 contos) - atribuídas a Tchetcho, que começa o grande celeuma que pôs aquela comunidade em alvoroço.
Na altura surgiram também acusações de que Misá teria uma conta em nome dos Rabelados, um endereço de e-mail e que a associação encabeçada pela artista – Abi djan – era uma forma de “disfarçar” as actividades desenvolvidas pelos Rabelados. O que a maior parte das pessoas não sabe é que a comunidade não pode ter uma associação oficialmente reconhecida porque estas pessoas não são registadas e nem nome têm. Uma simples declaração pedida ao banco pode esclarecer que não existe nenhuma conta em nome dos Rabelados. E que “rabelado” é um nome bastante utilizado nos endereços de e-mail em Cabo Verde.
As gentes dos Rabelados rejeitam estes ataques a Misá, ignorando-as até. Reafirmam aquilo que Nhô Agostinho, antigo chefe da comunidade, sempre defendeu: que “Misá é um anjo enviado por Deus”, mas sentem que “a sua recompensa só vai acontecer no céu”. Funku após funku, cada peça, cada novo equipamento, cada iniciativa tem a marca Misá. É o espírito que guia os Rabelados nesta “revolução silenciosa” que vão fazendo nas suas almas. Daí a alegria, o brilho no olhar, a felicidade que toma conta de anciães, jovens e crianças de cada vez que ela aparece. Afinal durante anos e anos os profetas da desgraça surgiram para ela, que foi considerada uma “lunática” por acreditar no desenvolvimento de uma comunidade que nunca foi “tida nem achada” em Cabo Verde.
Mas como o dinheiro é o vil metal, o seu tilintar tentou corromper os sonhos dos Rabelados, que sempre viveram à parte sem pedir nem exigir nada. Foram agitar um modo de vida que parou no tempo. Num truque da vida, os Rabelados também aguçaram o apetite da ganância dos votos, já que os Rabelados não votam, não têm partido e nem possuem cidadania. Como uma das anciãs afirmou: “Nôs partido é rabelado e nôs bandera é PAIGC”.
Olhar de uma menina Rabelada
Dois anciães da comunidade dos Rabelados
Estas pessoas juntaram-se a nós quando eu os entrevistava para o meu artigo.
Forno de cerâmica. Um dos meios de sustento dos Rabelados é a sua arte com a cerâmica.
As casas dos Rabelados são chamadas de "funkus". São revestidas de palha e muito fresquinhas!! As casa de banho são construídas à parte e parecem mini "funkinhos".
As mulheres nos Rabelados são mães muito jovens. Com cerca de 13, 14 anos juntam-se e têm filhos e as suas vidas, depois, são dedicados a eles.
Característica global em Cabo Verde é a beleza das mulheres. Aqui está um desses exemplares. Antes, as mulheres não podiam dançar nem cantar, mas agora até já têm um grupo de batuku!!
Quais playstations e televisões? Aqui as crianças brincam no meio da natureza, num ambiente bem mais saudável!!
Misá
Parteira que viu nascer todos os meninos da aldeia conta histórias de vida.
É com estas pintras que os Rabelados vão sobrevivendo e construindos os seus funkus. Tiveram formação na área da pintura mas tudo o que pintam vem da sua imaginação.
Tchetcho é o actual chefe dos Rabelados.
16 agosto 2007
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