Por: Catarina Abreu
A menina que vai a todos os comícios levanta-se cedo todos os dias para arrumar a casa, bater roupa e pentear os irmãos mais novos. Um deles até o poderia ser, se não fosse seu filho, razão pela qual anos antes foi obrigada a deixar a escola. Todos os dias fica por casa – a mãe trabalha na terra e o pai nos Estados Unidos. Mas desde o dia 1 de Maio que a sua vida tem uma alegria nova. Intensa e pouco duradoura. O prazo de validade está marcado para o próximo dia 19 de Maio, quando campanha e as eleições já terão terminado. Talvez até uns dias mais, para festejar a vitória do seu candidato. Aí então seria festa “bedju” por todos os cantos do concelho, com feijoadas, música bodona e paródia “dia, noite manchê”.
Quase todas as tardes, em vez de ficar em casa, veste a sua camisola do partido devidamente estilizada como está na moda na ilha do Fogo. Tal como as suas colegas e amigas, aproveita a t-shirt brinde da força política da sua preferência. Rasga, corta e cose de acordo com a sua imaginação e vai criando um estilo próprio. Na surdina, há uma competição entre elas para ver quem tem o design mais original.
Por volta das duas da tarde, a ‘hyace’ de serviço, apetrechada de cartazes do partido e balões, tocando a banda sonora do candidato, já chegou. É hora de subir para o carro e seguir viagem para a localidade onde o comício está marcado para hoje. Todos os dias é assim, a candidatura dá à menina transporte, alimentação e passeios de graça. E um ideal para acreditar. A menina dá à candidatura a alegria, voz e companhia das suas amigas, meninas como ela. Fazem-no com todo o fervor porque as gentes do Fogo são assim mesmo. Se acreditam em alguma coisa, entregam-se de corpo, alma e coração, acima de tudo e de todos. A menina e as suas colegas são a escolta do seu candidato e esta militância garante ao apoiado que as apoiantes não o vão desiludir no dia 18 de Maio. A vitória está garantida.
Mas a menina que vai a todos os comícios é apenas uma das pinceladas que compõe o quadro apaixonado dos tempos eleitorais no Fogo. A indiferença é algo nunca visto pelas terras do vulcão e cada um vive este ambiente ‘sui generis’ da ilha. No regresso das escolas, as crianças juntam-se para voltar a casa mas também para discutir política e ensaiar as palavras de ordem partidárias dos comícios. Os jogos de rua são diferentes também por esta altura e passam-se em palanques de brincar e discursos imaginários.
O mercado é um lugar farto em debate de ideias, frente a frente, está a senhora da fruta, que quer a continuidade e defende acerrimamente o seu candidato. Contra si, neste embate político no feminino, está a senhora dos queijos, que se diz “independenti” e que quer sangue novo a correr nas veias da Câmara Municipal.
Mudando de contexto, o assunto é o mesmo na barbearia mais central da vila. O escárnio marca o tom das conversas, que versam sobre as ofertas de cimento e sanitários normalmente feitas pelo partido que está no poder e que agora estão comprometidas devido ao afundamento do navio Musteru. O pedreiro, enquanto lhe moldam a barba ao milímetro, queixa-se que não consegue dar vazão aos seus expedientes porque não há cimento na cidade.
Um passeio em silêncio e atento pelas ruas de um dos três concelhos da ilha não descortinam conversas fora do âmbito político. Tudo se discute, todos os pormenores, roupas, penteados, ‘gaffes’, bocas, ideias, cores e vozes. Fala-se destas eleições a ferro e fogo com a propriedade e a paixão, que só as gentes do vulcão sentem. E entre elas, está a menina que vai a todos os comícios.
*Crónica publicada na edição 849º do Jornal A Semana
26 maio 2008
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1 comentário:
Adorei... se tivesse um blog, punha um link para este post...
beijão
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